#1 | Existe divisão entre vida pessoal e profissional?
Já achei que sim. Já achei que não. Hoje acho que mais ou menos.
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Cresci ouvindo meu pai me dizer que no dia em que eu ganhasse meu próprio dinheiro, eu poderia decidir o que fazer. Até lá, teria que obedecer tanto ele quanto a minha mãe, sem questionar. Mesmo em contextos bastante desfavoráveis para mim.
Nasci em Sorocaba, interior de São Paulo, em uma cidade bastante conservadora e religiosa. Cristã. Na minha época de infância, era o catolicismo a principal religião brasileira. Hoje, o número de evangélicos tem aumentado, tanto lá, quanto no País. A base moral, entretanto, é a mesma: os papéis sociais de gênero são bem definidos.
Veja, minha história não tem nada de atípica. Existem elementos que se repetem em muitos lares brasileiros. O ponto é que ainda existem poucas pessoas que falam sobre isso, pelo menos a partir de um lugar de maior consciência. De si e de classe.
O que aconteceu comigo foi que, por conta de um processo de ascensão social, demorei uns bons anos para entender a que lugar eu pertencia.
E ainda não entendi muito bem, para falar a verdade.
O processo de ascensão social da minha família está vinculado à minha ancestralidade paterna. Do lado materno, o desamparo da vida e a estrutura capitalista apertaram mais forte, demandando que toda a energia interna disponível naquelas pessoas fosse gasta para sobrevivência. Física e psicológica.
Meus avós paternos trabalharam como operários de fábrica e criaram oito filhos. Os cinco primeiros homens, meu pai ali no meio, começaram a trabalhar desde crianças.
As duas filhas mulheres nasceram mais pra frente. Também trabalharam desde cedo, só que dentro de casa, assumindo as tarefas domésticas e de cuidado dos irmãos. Nenhuma delas fez faculdade.
Todos os homens, por sua vez, se graduaram e se casaram com mulheres que também não tinham ensino superior. Todas as esposas pararam de trabalhar fora depois que se casaram, para assumir inteiramente os cuidados com a casa e os filhos.
E assim elas seguem até hoje. Na minha família paterna, não houve nenhum divórcio na geração do meu pai e meus tios. O primeiro divórcio da família aconteceu há pouquíssimo tempo, já na minha geração.
Sei hoje que as mulheres da minha família foram prejudicadas pela injusta dinâmica da economia do cuidado.
Trata-se de um tipo de trabalho não-remunerado e, portanto, desvalorizado, ainda que prioritário para a sobrevivência da sociedade com um todo.
Aprendi também a nomear o privilégio branco que beneficiou as mulheres da minha família. Ele existe, inclusive, na baixa renda.
Mulheres pretas nunca tiveram a escolha de não trabalhar fora para ter mais tempo de cuidar da cada e dos filhos. Por isso, quando narramos a nossa própria história é fundamental saber mapear onde nos localizamos, em termos de estrutura social.
Uma curiosidade: não faz muito tempo que percebi que, desde pequena, eu transito por espaços e grupos que não compartilham da mesma origem social e familiar que eu. Por conta da minha ascensão social, cheguei a lugares em que a maioria das pessoas em volta tem mais privilégios sociais e familiares do que eu.
Mas demorei para me ligar disso por compartilhar com elas o privilégio racial de ser branca, que é o mesmo fenótipo dessas pessoas. Isso alimentou a sensação de não pertencimento que me acompanha desde que me entendo por gente. Vou escrever a próxima news sobre esse tema.
Minha avó paterna, matriarca da família, que precisou sair da escola ainda nos primeiros anos do ensino infantil para cuidar dos irmãos ainda mais novos que ela, achava que não era necessário que mulheres tivessem ensino superior.
E foi isso que ela disse para meu pai quando ele contou que ía matricular sua primogênita, vulgo eu, numa escola particular. Seria um gasto desnecessário para se ter com uma filha menina, ela dizia.
Quem bateu o pé foi a minha mãe. Fui para uma escola particular.
Não conheci minha avó materna. Nem minha mãe a conheceu direito; morreu quando ela tinha 10 anos.
Filha do meio, minha mãe foi a primeira filha mulher, que veio depois de dois homens. Depois dela, vieram uma irmã e um irmão mais novos. Largou a escola no colegial, tinha muita dificuldade com matemática.
Meu pai fez parte da primeira geração da família com ensino superior. A ascensão social, iniciada pelos meus avós, se deu através do dinheiro, que possibilitou que os filhos homens conseguissem pagar por uma faculdade. Ele foi o primeiro dos oito irmãos que decidiu sair de Sorocaba e vir procurar um emprego melhor em São Paulo.
Levou a maior parte da vida profissional como trabalhador pendular. Passou mais de 20 anos acordando às 4h da manhã para pegar o fretado e construir sua carreira em uma multinacional. Ganhava um salário de São Paulo para sustentar minha mãe, a mim e meus dois irmãos vivendo em Sorocaba, onde o custo de vida era menor.
Tínhamos uma vida simples, mas não nos faltava nada. Pelo contrário. Lembro, inclusive, de alguns momentos pontuais de abundância, ainda que morássemos em um bairro periférico, que alagava todo mês de janeiro na época das chuvas.
Minha mãe se orgulha de nunca ter trabalhado fora, depois de casada. Acredita que o papel mais importante da vida dela sempre foi o cuidado da casa e dos filhos. Ainda assim, sempre me estimulou a estudar e a construir minha própria carreira.
O principal investimento que meu pai e minha mãe fizeram em mim e nos meus irmãos foi em educação. E foi através dela que demos continuidade ao processo de ascensão social da família. Como segunda geração beneficiada pelo acesso ao ensino superior, tivemos acesso a mais recursos intelectuais e culturais.
Meu pai conta que no dia em que foi me matricular na escola, a coordenadora me levou para conhecer a sala de aula. Eu devia ter menos de cinco anos. Entrei na sala, apontei para as letras do alfabeto em cima da lousa e comecei a citar todas, impecavelmente.
Minha mãe já me ensinava coisas da escola, antes de eu ir para a escola. Me puxou muito ao longo de toda a minha vida escolar, mas passou bastante do ponto no nível de exigência. Principalmente em matemática, que foi a disciplina em que ela mais teve dificuldade no ensino médio que não completou.
No meu primeiro dia de aula, foi ela quem me levou. Era um dia mais curto, porque as crianças estavam em adaptação, muitas chorando por não querer ficar longe das mães. Eu não chorei. Pelo menos, não até a hora em que ela reapareceu para me buscar. Ela e a professora tiveram que me convencer que no dia seguinte ía ter mais.
Eu sempre gostei muito da escola. A escola não apenas me apresentou um mundo além da minha família, mas também despertou em mim uma pulguinha que me lembra até hoje que sempre existe mais mundo para além do meu mundo. Pensar nisso me traz alívio instantâneo.
Isso significa que não preciso ficar presa em lugar nenhum. Existe sempre uma saída para outros lugares. Basta fazer a minha parte e esperar o tempo certo das coisas.
Paralelamente, as exigências da minha mãe também aconteciam nas tarefas domésticas. Como qualquer criança brincalhona, eu achava um saco lavar, passar e cozinhar, ainda mais considerando que só eu era cobrada por isso. Meu irmão, três anos mais novo que eu, nunca recebeu qualquer demanda doméstica, mesmo depois de mais velho.
Além da escola e das tarefas domésticas, minha mãe me cobrava muito em relação a mais um tema: a religião. Nesse ponto, não houve distinção de gênero. Meus irmãos também sofreram com as imposições (apoiadas pelo meu pai) para assistirmos à TV católica, ir à catequese, ir à missa, ler a bíblia, aprender a rezar e seguir os feriados santos. Além disso, houve também grande moralismo sexual na nossa criação.
Nesse meu contexto familiar, eu não via a hora de conseguir sair da casa dos meus pais. Me sentia reprimida e com pouco espaço para desenvolver qualquer interesse que fosse diferente do que eles planejaram para mim.
Meu pai trabalhava fora de forma remunerada, minha mãe trabalhava em casa de forma não remunerada. Fora, meu pai tinha sucesso, diferentes experiências e, por consequência, ganhava dinheiro e tomava as principais decisões da casa.
Dentro, minha mãe vivia um caos, cheio de altos e baixos psicológicos e emocionais, e com a sobrecarga de ser "mãe de três” sem qualquer rede de apoio. Nem gratuita, nem remunerada. Fora de casa, o mundo parecia leve. Dentro de casa, eu via que era muito pesado.
Qual era o caminho que eu tinha ali para me libertar?
Ir para fora. Estudar, buscar uma profissão, ganhar dinheiro e ir embora dali para conquistar a minha autonomia. E fazer minhas próprias escolhas, independente do que era exigido de mim - e eu precisava me submeter, porque era sustentada financeiramente.
Usei toda a minha energia vital no ensino médio para estudar. Convenci meus pais a me mudarem de escola para uma outra mais forte, fiz um exame de bolsa para conseguir desconto na mensalidade e precisei de dois anos de cursinho para conseguir entrar em um dos cursos mais concorridos da USP em 2006.
(Detalhe importante: na época que passei na Fuvest, havia 12 questões de matemática. Eu acertei 11. 🙃 Oi, mãe. Tá boa, gata? 👀)
Minha família não tinha condições de pagar uma faculdade particular para mim, ainda mais fora de Sorocaba. Tive o privilégio de ter o apoio deles com as minhas despesas nos dois primeiros anos. Depois disso, tive que me virar para pagar as minhas contas.
Faço parte da primeira geração de mulheres da minha família, tanto do lado materno quanto do paterno, que tem ensino superior. Eu sou a primeira pessoa que teve acesso à universidade pública e a única que se mudou sozinha para São Paulo para estruturar a própria carreira.
Não conhecia ninguém na capital. Tudo o que tenho hoje foi construído por mim mesma do zero. A começar pelas minhas relações pessoais e profissionais.
Correr atrás do dinheiro se tornou o meu principal propósito de vida. Eu levei isso tão ao pé da letra que, mesmo sendo jornalista de formação, estruturei a minha carreira dentro dos mercados financeiro e de capitais. Aprendi a lidar bem com dinheiro.
Mas com o tempo, o preço da escolha de correr atrás do meu dinheiro foi ficando alto demais. E aí, finalmente, entendi que o meu propósito de vida não era exatamente correr atrás do meu dinheiro.
Se fosse o dinheiro a coisa mais importante para mim, algumas escolhas que tomei teriam sido bem diferentes. Começar a empreender, por exemplo. Foi uma escolha que tomei no meu auge financeiro e profissional com carteira assinada.
Mas, por dentro, emocionalmente, a história era outra.
Quando eu ainda achava que minha prioridade de vida era ganhar dinheiro, tentei surfar a ingênua onda Millennial de que não existe divisão entre vida pessoal e profissional. Nos diziam para trabalhar com o que a gente ama, para nunca mais precisarmos trabalhar.
Só que eu trabalhava com dinheiro. E amar o dinheiro me parecia um pouco demais.
Nessa tentativa de amarrar as pontas soltas da minha história para conseguir entendê-la e narrá-la, finalmente compreendi que meu propósito de vida não era correr atrás do dinheiro. Era correr atrás da minha autonomia.
Só que demorou alguns anos para eu perceber que, em um contexto capitalista, dinheiro e autonomia são sinônimos. Especialmente para mulheres.
Não precisar separar a vida pessoal da profissional é um privilégio de quem também não precisa se preocupar tanto assim com a própria sobrevivência financeira.
E de quem já tem a sua autonomia e o seu lugar no mundo respeitados, desde a infância.
Dinheiro é sim, e sempre será, muito importante para mim. Como é para todas e todos nós. Mas descobri que, antes dele, proteger o meu lugar no mundo, onde eu possa ser eu mesma, é a minha real prioridade.
E logo entendi que, no meu contexto de vida, para conseguir proteger a minha autonomia e o meu espaço no mundo, é indispensável separar minha vida profissional da pessoal. Ao contrário do que já me disseram muitas pessoas de grupos dos quais eu pensava que pertencia. Mas que, na verdade, tinham realidades e contextos de vida muito diferentes do meu.
É por isso que estou criando um segundo canal de comunicação aqui no Substack (o primeiro é a minha newsletter profissional, da Repenseria). Não é de hoje que alimento uma vida dupla nas redes sociais. (: Gosto muito de me conectar com outras pessoas virtualmente e quero trazer a minha turminha para cá. Venham!
Como acontece com a maioria das pessoas que já tiveram contato direto ou indireto com contextos de escassez, tenho muito medo de ficar sem dinheiro. Mas percebi que é ainda maior o meu medo de perder a minha autonomia, tão suada e batalhada desde criancinha.
Fico feliz de ter conseguido perceber essa diferença. E desejo que aconteça o mesmo com você.
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Vamos de curadoria?
Já conhece o psicanalista Kályton Resende? Ele tem uma linha de pesquisa muito interessante sobre trauma da pobreza e efeitos da ascensão social, a partir do contexto do aumento do acesso de pessoas de baixa renda ao ensino superior nas duas últimas décadas.
Foi com ele que entrei em contato com a teoria de que existem experiências subjetivas comuns à primeira, à segunda e à terceira gerações que tiveram acesso ao ensino superior dentro de uma família.
Recomendo demais! É um suco de Brasil. E uma aula para nos ajudar a contextualizar melhor a nossa história individual, familiar e coletiva.
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Vou adorar seguir conversa nos comentários!
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Vem aí!
Na próxima news, vou falar sobre a minha sensação de não pertencimento por ter alcançado lugares em que a maioria das pessoas à minha volta tem mais privilégios sociais e familiares do que eu.
Quem sabe você não se identifica com isso também?
Até já já! 👋
_ Jenifer
Adorei e para mim faz sentido no que vivo e penso. Obrigada por isso!